Não era exatamente maldade. Tia Iná era franca. Dizia o que pensava sobre as pessoas e se as pessoas não gostassem, azar. Ou, como ela gostava de dizer, "azeite".
- Tia Iná, a senhora chamou o Ildefonso de esquisito.
- E não é?
- Mas a senhora chamou na frente dele! É por isso que ele nunca mais apareceu.
- Azeite.
E o pior era que as opiniões da tia Iná eram certeiras. Impertinentes, insensíveis, mas certeiras. O Ildefonso era mesmo muito esquisito. E as irmãs Cora e Clara, por exemplo. Um dia tia Iná apontou para uma adolescente, depois para outra, e sentenciou:
- Maçã e pêra.
Tia Iná não precisou explicar a comparação. Era perfeita. Uma irmã, justamente a Cora, era corada. Se alguém quisesse descrevê-la com menos síntese e precisão do que a tia Iná, poderia usar a ótima palavra "rubicunda", com tudo que ela sugere. Já a cor da Clara não era apenas clara, parecia ser o que sobrara depois de uma cor indefinida, talvez um vago amarelo, ter desbotado. E não era só a cor. Com duas palavras, tia Iná definira o destino das duas, as vidas que levariam, baseada nas suas aparências. Uma, uma excitante vida de maçã, a outra uma vida sem graça de pêra.
Mas acontece o seguinte. A maçã deve boa parte da sua reputação mais à imagem do que à biografia. Ao contrário do que a maioria pensa, não foi uma maça que Eva comeu e levou o primeiro casal a ser expluso do Paraíso. Não há nenhuma referência a maçãs em Gênesis. A maçã só aparece na Bíblia muitos capítulos depois, nos Cantares de Salomão ("Confortai-me com maçãs, pois desfaleço de amor"). Ficou como símbolo do pecado original que nos condenou à finitude e à culpa porque parece ser pecaminosa, mas é inocente. Pode argumentar que nem estava lá, na ocasião. Já se especulou sobre qual seria a fruta que Eva comeu no Paraíso, se não foi a maçã. Talvez o figo, que também tem uma aparência lúbrica, hipótese reforçada pelo fato de que em toda a representação antiga do Éden são folhas de figueiras que aparecem cobrindo as partes pudentes de Adão e Eva. O que ninguém nunca especulou é que a responsável pela tentação de Eva fosse a pêra. Logo a pêra?! Mas por que não? Talvez a pêra tenha uma história secreta, ainda a ser revelada. Que melhor disfarce para levar uma vida secreta como ser conhecida por todos como a irmã sem graça da maçã?
Cora e Clara passaram anos sem ver a tia Iná. Um dia Cora foi visitá-la. Contou que Clara não gostara da comparação com pêra, ficara sentida, nunca perdoara a tia Iná. Que disse "azeite" e comentou a gordura da Cora.
- Você parece uma vaca leiteira.
Cora deu risada. A tia Iná continuava a mesma.
- Estou com três filhos, tia. O último ainda mama no peito.
- Três filhos. Esse corpo disforme... Eu imaginava que você ia ser outra coisa.
- Que outra coisa?
- Não sei. Ter uma vida mais excitante.
- Quem tem uma vida excitante é a Clara. A senhora não tem visto as revistas? Ela é a modelo que mais aparece no momento. Com aquela palidez, aquele ar de subnutrida... Eu também tentei ser modelo mas não me aceitaram. Disseram que eu era muito colorida. Acabei nesta vida pacata...
- De vaca leiteira.
- Lembra maçã e pêra, tia?
- Lembro.
- Estão preferindo as pêras.
- Estão preferindo as pêras.
sábado, 8 de novembro de 2008
Maçã e Pera - Luis Fernando Verissimo
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